O Festival da Bua, a colheita da noz de areca, que marca a paz na ilha timorense de Ataúro (C/FOTOS)
*** António Sampaio, da Agência Lusa ***
Abaktedi, Timor-Leste, 22 jul 2020 (Lusa) – Os lian-nain, contadores de histórias dos tempos dos “avós antigos” em Timor-Leste, explicam que a festa anual da colheita da noz de areca, ou betel, representa a paz entre três irmãos que durante muito tempo viveram em conflito.
Uma vez por ano, e só por um dia, a população da zona central da ilha reúne-se e assim que os chefes locais e tradicionais permitem, os mais destemidos trepam acelerados até ao topo das palmeiras de areca (bua ou pua nas línguas locais) – algumas com 20 metros – e retiram cachos de nozes.
Jovens e velhos, com uma pequena corda feita muitas vezes de folhas de palmeira atadas, trepam aceleradamente ao longo do esguio tronco da palmeira, cortam os pesados cachos e trazem-nos ao solo.
Quem sabe podar, usa cordas e, lá no alto, une duas árvores próximas, para assim cortar mais cachos, mais rapidamente. No solo, crianças e mulheres vão apanhando os frutos que caem.
A cerimónia decorre no meio de uma floresta de palmeiras de areca próximo da povoação de Abaktedi, suco de Makadade, na zona centro sul da ilha de Ataúro.
Para lá chegar, é necessário suportar uma estrada esburacada e cheia de pedras, a viagem dura uns solavancados 90 minutos, para fazer os cerca de 20 quilómetros de Beloi, junto à costa, até à povoação de Abaktedi, a 700 metros de altitude, à sombra da montanha mais alta da ilha, Manucoco.
No centro da floresta de palmeiras, altas e esguias, uma zona foi preparada para os convidados de honra e numa das esquinas o resto de uma palmeira serve para o tarabando, uma cerimónia tradicional timorense que, neste caso, permite pendurar ofertas aos organizadores.
Peixe seco, tua mutin (o vinho tradicional de palmeira) e areca são pendurados no tronca da palmeira para serem distribuídos depois.
Em todo o lado, em todas as direções, nasceu um mercado improvisado que vende desde artesanato a comida, desde roupa a frutas e verduras locais, incluindo laranjas, abacates e gigantescos kumbili, uma raiz “parecida à batata”.
Entre tétum, português e alguns dialetos locais, alguns jovens, mas particularmente os mais velhos vão contando a história dos três irmãos e do importante “Festival da Sa’e Bua”, que se vai prolongar durante toda a noite.
“Esta história é muito antiga mesmo”, explica Armando Soares, 67 anos, que viajou mais de duas horas a pé, a subir e a descer montes, desde Makili, a vila dos pescadores da ilha.
“Antigamente nos tempos dos avós mais antigos havia três irmãos: Komateu, Leki-Toko e Kutu-Kia que andavam sempre nas lutas”, explica.
Tomé Gomes, mais jovem, junta-se à conversa e vai ajudando a explicar e a traduzir.
Os três irmãos estavam sempre em conflito e isso estava a causar sempre grandes problemas aos habitantes, levando até a que as terras ficassem secas e que os cestos de apanha de peixe (bubur) viessem vazios.
“Decidiram fazer as pazes e esta floresta apareceu assim, de repente”, explica Abilio Araújo, 67 anos, lian-ain de Makadade e o anfitrião tradicional da zona que acolhe a cerimónia.
Para cimentar a paz usaram a bua, mas também dividiram o território, lançando flechas que marcavam o que ficaria seu: Komateu lançou a sua em direção a Manroni, Leki-Toko em direção a Makili e Kutu-Kia em direção a Makadade.
Komateu fica com o mar ao norte, Leki-Toko com o mar do oeste e o Kutu-Kia com o mar a sul.
Hoje, os três sucos continuam a simbolizar a paz da ilha, sendo anfitriões do “Festival Sa’e Bua”, um dos principais eventos de Ataúro, desconhecido porventura da maioria dos próprios timorenses.
A noz de areca, conhecida como betel, é comida fresca ou seca, misturada com folhas de malus – que eram usadas como ‘proteção’ dos jovens nos combates aos ocupantes indonésios – e com cal viva.
A mistura produz um suco vermelho que, entre dentes, vão cuspindo para o chão, rindo-se com a dentadura, os lábios e a boca de cor vermelho forte.
A nível químico, a areca tem como princípios ativos a arecaina e arecolina, alcaloides com efeitos comparáveis aos da nicotina.
“Para quem não experimentou fica assim meio bêbado. Mas para nós ajuda a dar força. Para trabalhar”, explica um velhote, sentado, enquanto vai metendo cal na palma da mão para misturar nos dois outros ingredientes que já tem na boca.
Os irmãos fizeram a paz e agora, para a assinalar, todos os anos e só por um dia, pode-se colher toda a noz de areca que conseguirem. A que ficar nas árvores fica à guarda de ‘seguranças’ que garantem que só é aproveita para mais plantações, “lá para janeiro”.
“A pua e a malus são a fonte da vida para Ataúro”, conta o velho lian-nain, num discurso em que mistura referências ao criacionismo com recomendações aos jovens para se portarem bem, e referências às mais antigas lendas da ilha.
“Isto é muito, muito antigo. Dos avós antigos. E vai continuar sempre”, explica.
*** A Lusa viajou para Ataúro a convite do programa Tourism for All da USAID, no âmbito da ação de promoção de turismo doméstico #HauNiaTimorLeste ***
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